NA CASA DA CRIAÇÃO: VERA SABINO
Carmen L. Fossari
No alto do morro
Um verde plantado
Pequeno oásis
Clorofila
No desmatado espaço
Circundante
Miragem
Imagem
Um portão grande também verde
Ao muro de tijolos aparentes
É aberto
Tudo é chacra
Foz do rio nascente
Matérias que se transmutam
Bromélias me saltam a vista
Vidros em suas transparências
Revelam vários pisos
Uma casa que não tem fim penso.
Há ainda obras sendo feitas
Tijolos e argamassa
A casa como a pintura
Que realiza
De não ter fim,assim o são.
Movimento de seus seres
Que a habitam.
Horta, flores, e objetos
Muitos.
Tantos que se agrupam
Móveis antigos imponentes
São delicatessens de culturas diversas
Cimentando viagens ao mundo das
Recordações.
O pequeno oratório ao canto
Repleto de santos de cerâmica
Acima os santos grandes
Uma santaria reunida
Como pássaros
E logo um e outro armário
Madeiras formatadas
De centenário feitio
Sob suas prateleiras os objetos
Tão femininos a ornarem
Porcelanas,biscuits,e dedais
Miniaturas.
Bordadas as recordações
Nas esculturas do tempo
Que ali não ousa valsar
Apenas ele , o tempo
Penetra silencioso nas
Conchas ,o mar em representação
Alí traz as marés de espumas
Algas,tudo é oceano
Que navegam nossas mentes
De olhar em pouso sobre
Sua morada.
E ainda as paredes repletas de arte
Não só dela, a Vera de alma Sabina
Que gera estes mundos incrustados
Paralelos ao seu impar mundo
O mundo da criação pictórica.
Deixa em suas paredes
Tantas obras
Ao lado de seu santuário
Das tintas e desenhos que ali são plasmados
As telas do companheiro
O Semy Braga
Também pintor, também poeta,também
Que o amor sabe o segredo
Dos verdadeiros encontros.
Lá na casa ao alto do morro
Avistamos a Ilha de concreto
Vertical, se travestindo ao modernismo
Impensado
Meu olhar sofre o impacto
Olhar fora a cidade de pedra
e sentir meus pés
Tocando ao solo onde tudo se reparte luz.
Vejo pinturas de Semy Braga,Pléticos,Sueli Beduschi
Vejo tapeçaria do Vichetti , que lhe foi amigo, desenhos
Do Beck,Fossari, tantas obras
Tudo em arte está ali plantado.
E há ainda a praça com o nome paterno
Que ela homenageia assim seu grande incentivador
O pai que foi mas está ao coração .
Penso, aqui tem a atmosfera da casa de Neruda
em Isla Negra
Lá onde não é Ilha, é Pacífico.oceano bravio
Aqui onde é Ilha,Atlântico,com recortes de calmarias
Confessa Vera, que visitou as casas de Neruda
em Santiago e teve a mesma sensação
Identidade.
II
As paredes da casa
Confluem em uma galeria
Galeria casa
Casa voadora
Como um pássaro que reúne todas as almas por milênios.
Ao segundo andar,
subindo por uma escada
de balaústres torneados em madeira
chegamos ao patamar .
Sim, inverto o sentido
Ao segundo, o patamar
Pois ali o espaço onde pinta.
Os desenhos?
Leva consigo antes de dormir,
Desenhar, a cama acostumou-se
Ao hábito
Talvez para sonhar suas cores.
No ateliê ,pés ao chão, pernas entrecruzadas
corpo que se projeta
posição fetal.
Três são os filhos gerados:
Bruno, Jorge e Marco
E de seus filhos já os filhos:
Yasmim e Gabriel.
Da artista herdaram a sina
Dos gerados em “Casas da Criação”
São os códigos secretos , impalpáveis
Que caminham desde a infância
Ao inconsciente e ali bordam
As tatuagens do ser.
Vez e outra são
Tingidos de caminharem
Por entre telas e cores.
Têm, na palma da mão,
O Imaginário
E vêem a diário
Ser o mundo repaginado
na nova tela
Que acaba de nascer.
Assim de corpo a proteger o útero da criação
Postada ao chão,
Nasce fértil , vivaz
A feminina arte de VERA SABINO.
Não há fronteiras entre o ser e o estar
que não esteja tatuado das entranhas do olhar
que vê o além.
Rara sensação,Vera conversa,e com panos
brancos em camadas diversas
volteia a tela,esfumaçando as tintas
agregando camadas,contornos,cores
que mistura de primárias, obtendo tons tão próprios
e ali ao útero da criação é capaz de gestar
outros seres, santos, mulheres da ilha.
Predomina a figura feminina
Seria ela mesma a Vera
A modelo observadora,e observada
postada na maioria de suas telas?
Penso na Arte Bizantina,
figuras femininas(em sua maioria) de mantos
Olhares fixos que nos acompanham
As imagens de seus quadros têm este olhar fixo
E atentamente percebemos que dentro dos
Olhos, há outro olhar
Assim uma unidade
Formada na duplicidade de efeitos
Revelando infinitudes.
Que sua arte vem desde sempre
delicada e forte, detalhes, a ilha, peixes
flores, bromélias,pássaros, janelas, luas
cortinas, rendas, tudo se plasma
voltam os santos, via crucis, vasos.
Olho as telas,não as quero ver
Apenas escutar o que me dizem
Do tempo, do vento
Do ventre da criação
Este mundo que vive dentro
De seu ser, é habitado por 3.000
Anos de almas,
Que plasmam a vida plena
As cores vivas, púrpura, vermelha
Liláses etéreos, oníricos.
Verdes e azuis tonais, brancos de recortes
Como filetes de lua
Lua nua que adentra aos poros
E liberta ao vôo
Arco-íris e Auroras boreais
Sob açorianas formas
Tracejam o caminho do infinito
Na obra de Vera Sabino.
ilha VI de II DE MMVIII C.F.
Carmen L. Fossari
Lindolf Bell – poeta e crítico de arte
Membro da AICA e ABCA
“De incansável dedicação,a obra de Vera Sabino se acresce. Se desdobra.Entre mito e erudito a artista se supera, obra a obra.
As mulheres se multiplicam, metamorfose, transfiguras, mas sempre a mesma imagem de exuberância contida e insólita reinvenção. Em selvas incomuns, onde coabitam,plasticamente, fragmentos do Inconsciente (o invisível) e elementos da paisagem visível, táctil. Na certeza e contemplação convivem hibiscos, samambaias, musgos, Xaxins,bromélias, cactáceas de cores surpreendentes, folhagens docoração na contraluz, para olhar e sentir. A pintura de Vera Sabino se faz contribuição decisiva nas artes plásticas contemporâneas.Espelho vivo de um universo em construção,livre para reencontrar o lado mais oculto da própria liberdade.”
Walter de Queiroz Guerreiro
“Vera Sabino é antes de tudo uma artista da linha, a linha é seu meio de revelar o mundo, e ao fazê-lo repete a tradição sufi, afasta um dos véus da realidade ao mesmo tempo que a recobre com outro véu, tantos quantos são a alternância luz e sombra na criação do mundo.Tudo se resume na linha, ela é o fio condutor.A que nos conduz? Ao mito revisitado.Realizando arte bruxólica,Vera Sabino conduz através de metáforas visuais a inquietude dos mitos ilhéus, o desvelar de um conhecimento perdido que é o reflexo de nossos medos mais profundos, proposta iniciática de uma união criador-criatura através da natureza”
Harry Laus
escritor e crítico de arte
Membro da ABCA
“Os seres de Vera Sabino tem grande compromisso com a natureza.É evidente que, como artista, a natureza nos quadros de Vera é vista por um prisma que nós, os mortais comuns não percebemos.Seus pássaros, peixes, borboletas e serpentes confabulam com os personagens e emprestam a eles a visão que,talvez, lhes seja peculiar.Disto resulta um mundo mágico que seria muito grato ao Felini,por exemplo, em sua incansável busca do irreal dentro da realidade.Não há nenhum espaço gratuito nos quadros de Vera Sabino.Partindo de um desenho onde a sensualidade do traço jamais se vulgariza, trabalha centímetro por centímetro, até que toda a superfície esteja plena.Então vemos que sua criatividade foge a todas as regras de forma e de cor, numa tal liberdade de concepção que um peixe pode ser um adereço e a cabeleira compor-se de flores insólitas.”
Paisagens da janela, a alegoria de Vera
Dora Maria Dutra Bay
Membro da AICA/ABCA
Ilha de Santa Catarina, 2003
Pintora desde a adolescência, Vera dedica-se inteiramente à arte, vive da e na arte em sua plenitude. Seu repertório iconográfico é facilmente reconhecível, já que desde há muito tempo existem constantes em seu trabalho. Nas obras que compõem a ilustração do poema, percebemos que a artista não estabelece limites entre o onírico e a realidade: é o inconsciente da artista que aflora, ela pinta a cena oriunda de sua fantástica interior. Pinta o sonho do pescador, uma vez que o pescador é um sonhador. Este conteúdo onírico apresenta-se numa organização diferente da realidade da superfície, como num efervescente mundo imaginário, quase mítico, povoado de seres marinhos pertencentes ao cotidiano dos pescadores locais. Desta forma, cada uma das pinturas pode ser entendida como um micro-mundo, onde os elementos apresentam-se leves, soltos, flutuando, em constante movimento. Há uma permanente sensação de agitação e vibração, como se a pintura pudesse transformar-se, alterando a posição das partes que a compõem. Esta composição inusitada, essencialmente feminina, na qual os elementos apresentam-se deslocados de seus locais habituais, juntamente com cromatismo intensamente explorado e associado à temática, cria a tensão presente na obra, atraindo a atenção do leitor como um chamamento à sua fruição.
Vera serve-se de apurada técnica pictórica, por ela mesma inventada e aperfeiçoada, que inclui vários e meticulosos procedimentos. Por meio de tal processo de pintura, elabora figuras, volumes, luz e sombras para criar as representações, alcançando um resultado bem particular, que lembra a textura visual do pontilhismo. Suas pinturas mostram primeiros planos tomados por mulheres e peixes, de modo que as paisagens configuram-se como cenários preenchendo o espaço circundante. São paisagens muitas vezes vistas de suas janelas e que uma vez guardadas na memória, retornam às pinturas. As mulheres e os peixes, já tão peculiares em seu trabalho, são elementos que sobressaem pela forma como a artista os representa, de maneira bem mais sofisticada e com algum sentido de abstração. As obras mostram seqüência e unidade, cuja visualização é enfatizada pela mesma rede de pesca que se estende continuamente pelas pinturas.
Nas pinturas de Vera a cor é exaustivamente explorada, prevalecendo alguma intensificação dos tons quentes e vibrantes. As nuances resultantes do efeito que simula o pontilhado, criam texturas visuais precisas, e os contrastes marcados atribuem sensações às formas, como de leveza, dureza e maciez. O colorido dos seres marinhos mostra uma luminosidade acentuada pelo reflexo do mar, e que, algumas vezes, quando eles já estão na superfície da água, se esvai transformando-se numa sombra distante. A artista dá atenção muito especial aos detalhes e miudezas, ricos em colorido, que formam padrões e texturas, como os cabelos, as escamas, os fios, as pontas, os tramados, as conchas e os espinhos, os quais através da repetição, criam um ritmo especial. Outro detalhe de marcada expressividade é o tratamento dispensado aos olhos dos peixes: parecem mirar o infinito, na espreita de um destino que sabem certamente acontecerá.
As figuras femininas, alegorias bem elaboradas no estilo pessoal de Vera, foco principal das obras, apresentam-se constituídas de formas arredondadas, cabeças inclinadas em relação ao pescoço, num olhar vago, distante e romântico; mulheres dotadas de cabeleiras fartas e esvoaçantes, olhos profundos e detalhados que miram o próprio interior, num olhar lânguido, esquivo e distante, olhar de vidro, desvivido. Parecem mesmo aflorar do inconsciente, como ‘anima’, ou mulher arquetípica.
Sonhadoras, sonham com os mistérios do mar?
Com o regresso de seu pescador?
Sugerem Medusas vaidosas, em suas cabeças adornadas com peixes-arco, e outros seres marinhos que as tangem, peixes na garganta, ou que se entrelaçam em seus cabelos transformando-se em motivos ornamentais, vestem-se de estrelas do mar.
Espelham cabelos do tempo?
Euforia de tempos?
Seriam estas mulheres as representações do feminino do imaginário do pescador?
Ou a eterna onipresença da feminilidade manifestada através da natureza?
Canto da bruxa?
Toda a metáfora visual de sua obra parece estar presente na pintura que nos mostra o barco alado, a canoa pássara. Com suas robustas e suaves asas, a barca representa a exploração do mundo inconsciente, da viagem interna da artista e de cada um de nós. Portador da simbologia da viagem, da travessia para um outro mundo, para o além-mar, o barco, assim como os habitantes do mar tratados de forma onírica, bem nos parecem figuras emprestadas da mitologia.
Limo inicial?
A obra de arte sempre deixa ver a concepção de mundo e a atitude do criador frente à realidade. No caso de Vera e Semy, além de nos contar a respeito do contexto cultural açoriano ilhéu, as obras nos remetem, ao imaginário português, o qual é sobremaneira povoado por imagens do além: d’além-mar, do eterno convite à viagem, simultaneamente da partida e do regresso, testemunhando nossa herança comum lusitana. Obras plenas tanto de simbolismos quanto de qualidades e soluções plásticas são como paisagens imagísticas de um colorísmo vívido, oriundas dos fecundos universos expressivos dos artistas. Universos estes, tão particulares, quanto verdadeiros, pois que se mostram impassíveis em face às imposições dos modismos em arte.
Viagens através do espelho da retina?
A possibilidade de leitura de uma obra de arte é inesgotável, e a que aqui ensaiamos não escapa à generalização. O poema deu origem à pintura, que na seqüência originou um comentário, provocando uma quase tautologia: a passagem da palavra escrita para a imagem visual e desta novamente para o texto discursivo. Assim, aventuramo-nos ao encontro de alguns aspectos significativos, buscando a tessitura e a sintonia existentes entre o poema e as pinturas. Esperamos que esta leitura crítica constitua-se numa forma de abrir caminho para que o leitor acesse a obra por meios próprios, num favorecimento à criação de outros percursos, de novas narrativas e olhares, nesta carta sem roteiro.
OLHARES
Mirian de Carvalho
Para Vera Sabino
Antes que à rua chegassem os anjos, a lâmpada
os contemplou. Antes que a morte chegasse à
casa, sob a fala do olhar arderam desejos do
lânguido peixe reproduzindo as espécies. E à
onipresente contemplação da véspera, eriçaram-
se as escamas dos dragões de incontidas
chamas registrando as horas nos olhos dos
bichos.
Não era cedo. Nem tarde.
Olhares escalando o dia.
Aos olhos da mulher a antecipar a festa de
domingo, nasceram videntes caules e
plumas, sorvendo as cores rubras da romã.
Varrendo a lua, flamejava o sortilégio dos olhos
da vassoura encantada. E varrendo os pecados
do mundo, o rosário de contas acendia a
lamparina ao santo de devoção.
Nesse tempo, a janela atravessou a luz
para inseminar os olhos da fêmea.
Nesse lugar, ante as mutações da fábula o
escorpião se cansou do veneno.
E, amoroso, na taça dos anjos ele
bebeu o leite das flores de um rio
antigo.
Muito muito antigo.
INTERPRETAÇÃO PICTÓRICO-POÉTICA DE SUBSTRATO FANTÁSTICO
Péricles Prade
(Das associações brasileira e internacional dos críticos de arte)
A pintura figurativa de Vera Sabino se insere nos domínios do imaginário fantástico, percebendo-se ressonâncias do código mítico-mágico de Hyeronimus Bosch, do maneirismo culto de Giuseppe Arcimboldi (a paisagem antropomórfica e a vocação alegórica dirigida à elegância do adorno) e da tensão onírica, dramática, naturalista e romântica de Henri Rousseau, sem que, a rigor, constituam influências decisivas devido à originalidade exemplar de sua criação, vinculada, historicamente, à outra ambiência e técnica do fazer artístico. Não obstante a característica do tônus original, é imantada pela fértil atmosfera da tradição (bizantina/medieval/renascentista/açoriana), cuja presença insiste em permanecer, inclusive quando revela traços da art nouveau de forma contida.
Daí o equívoco de alguns exegetas que, sem razão, em seu repertório vislumbram surrealismo (quando há, apenas, simbolismo de extração inconsciente) ou expressionismo (confundindo-o com elementos e objetos expressivos), desconhecendo ser diversa a vertente do estilo. Este, na verdade, conflui do requintado disegno fantastico de viés metafórico para possibilitar a cerebral construção de imagens de múltiplo sentido, à margem da mera translatio e do traço artificial.
Toda essa fascinante complexidade também se encontra nas 15 pinturas da artista, criada a partir de poemas de 15 poetas catarinenses e musicadas pelo virtuose Alberto Heller.
Verifica-se, nelas, o recorrente bestiário do reino animal (criaturas da terra, da água e do ar), a preciosa decantação do esplendor da flora opulenta, a aura do cenário hagiográfico e celeste (anjos, estrelas), ressaltando-se, no entanto, a andrógina e dionisíaca máscara frontal, hierática e heráldica de uma jovem mulher (ou madona), com cabelos às vezes medusianos, num plano táctil de circularidade mandálica, comparecendo em todas as peças como personagem central, de olhar ora ambíguo e otimista, ora melancólico e ingênuo, sempre encantador e instigante, fundado na arquetípica lembrança do ancestral e lúdico paraíso perdido da infância passada nesta ilha de prodígios, sortilégios e transfigurações.
E tudo criou tendo os poemas como ponto de referência, sem se comportar como ilustradora servil, transcendendo a linguagem da narração enquanto tal e reinventando os mitos com humanidade e humildade, ciente de que, no plástico processo das metamorfoses, prefigura enigmas indecifráveis para os não iniciados nos temas do universo oculto.
O Olhar de Vera Sabino
Lélia Pereira da Silva Nunes
Olhar de doçura incomparável, a descobrir nuances de magia e encantos, a recriar na linguagem plástica o real e adentrar no imaginário insular, no tênue fio que conduz e ao mesmo tempo separa o real do irreal.
Um olhar que vagueia sem pressa pela paisagem exuberante, repousa no regaço nativo da mulher rendeira a entrelaçar fios e a tecer vidas, no pescador a lançar a rede no mar azul de brancas ondas rendilhadas.
Um olhar que se ilumina ante o tremular da bandeira do Divino, na sincronia do secular ritual, dos códigos e símbolos a revivificar na Florianópolis do Divino.
Um olhar pleno de religiosidade e fé na evocação do rosário hagiográfico de suas madonas e santos.
Seu olhar cheio de graça brinca matreiro no olhar da mulher. Gaivota a espiar e buscar rotas. Olhar cheio de sensualidade a adivinhar o ondular do corpo na cumplicidade dos olhares que transparecem na pungência pictórica.
Olhar de muitos tons e cores a dar vida às formas e figuras resgatadas do imaginário mítico e fantástico da Ilha de Santa Catarina.
Olhar que aproxima a natureza e o homem, a terra e o mar, o ser e o estar na Ilha. A sinfonia do encontro da pintura onírica e lírica…
No mosaico de cores, luzes e formas a afirmação da sua identidade. No olhar, o surreal da Ilha com suas tradições e valores da cultura popular açoriana sobrevivente. A façanha do olhar vincado nas raízes e nos caminhos telúricos vivos na memória e no germinar da semente profícua, no perpassar de gerações. Descortina imagens e lugares de um jeito singular como o sussurro do vento Sul que chega como um amante no bojo da paixão.
O pincel de Vera, artífice do fazer e do saber, navega livre, compõe com Arte, refaz rotas, percorre mares e chega impregnado de sal e maresia junto com a onda a beijar a areia da praia.
Vera Sabino acrescenta sempre. Desvenda a alma da Ilha e da gente. Redescobre nossas histórias e geografias, unifica o espaço, apaga o tempo e, então, regressamos ao ontem que fomos a ao hoje que somos.
Ao atravessar este portal que é o nosso mar circundante e se aproximar da gente de outras ilhas de lá dos Açores ou de cá, desta ilha da magia, abençoada por Santa Catarina, traz na bagagem a beleza de sua arte. Uma arte que surpreende pela força que imprime a cada imagem moldada na mais pura temática do fascinante substrato açoriano, presente no litoral catarinense e revelados no seu notável universo cromático.
Sua arte encontra nas tradições de seu povo e sua ancestralidade a fonte de sua inspiração. Ancorada nos valores culturais da terra, do Sul do Brasil, desta Ilha de Santa Catarina, a criatura, a pintora, a mulher Vera Sabino com dignidade e orgulho apresenta a sua identidade cultural – açoriana de Santa Catarina, – a Décima Ilha.
A contribuição da pintura de Vera Sabino é inconteste e se faz decisiva no panorama da arte contemporânea catarinense, com reconhecida projeção nacional.
Agora, foi a vez dos açorianos conhecerem sua Arte. Imagens tão suas como os sonhos partilhados e as raízes partidas há mais de dois séculos. Significados fortes de pertencer ao lugar de partida e chegada. Para Vera Sabino, de regresso a sua história de vida e de arte.
A Direção Regional das Comunidades, da Presidência do Governo Regional dos Açores, ao realizar a Semana Cultural do Brasil fortaleceu laços históricos e culturais que unem os Açores e o Sul do Brasil, fruto de uma mesma matriz civilizatória e, sobretudo, fez pulsar no mesmo ritmo, sentimentos de comunidades irmãs, ainda que separadas no tempo e no espaço.
O Imaginário da Ilha de Santa Catarina,
Na arte de Vera Sabino e Semy Braga
Acabo de encontrar a alma.
Demarcada – insular.
Lá
Pertinho da imaginação.
Nada igual
Um horizonte de águas
Desenhando a dança.
Semy Braga in: Jardim dos Aromas.
No olhar do imaginário, esta forma alongada que se aproxima, languidamente, à costa continental do Brasil, no extremo sul da América e do Atlântico, parecendo liberta da terra-mãe, é a Ilha de Santa Catarina – a Ilha-Mulher, ali albergada e acariciada pela imensidão do mar que a abraça num permanente e enamorado diálogo.
Na geografia cultural da Ilha, no cenário cosmopolita e ao mesmo tempo provinciano está Florianópolis a alma da Ilha de Santa Catarina. Nos caminhos desenhados e percorridos por gerações estão os escritores e os artistas como o casal ilhéu o poeta e pintor Semy Braga e a pintora Vera Sabino. Marido e mulher. Pena e pincel, lado a lado, numa sinfonia de encontros, de cumplicidade de alma, derramam seu olhar e captam o mundo ilhéu na sua real dimensão ou na dimensão do sonho, do realismo fantástico que habita esta Ilha mítica, eternizando-o na prosa, na poesia, na arte pictórica. Abrem as comportas da criação, cristalizam esse universo no abraço das palavras, na intensa linguagem plástica das formas e de um colorismo vívido que aflora e faz vibrar os fervores da Ilha.
Quando se fala na presença do imaginário na literatura e nas artes catarinenses contemporâneas, de imediato os dois nomes são citados com admiração. Uma arte que navegou pelos Caminhos do Mar e chegou ao porto açoriano de suas memórias ancestrais. Um percurso reconhecido e respeitado no arquipélago açoriano onde a sua criação artística foi amplamente divulgada, alvo de inúmeras citações e matérias no Suplemento Atlântico de Artes e Letras – SAAL, que circulava encartado na revista Saber Açores, tendo à frente, como seu Coordenador, o escritor ensaísta e crítico literário Vamberto Freitas, grande difusor e defensor da cultura açoriana por todos os cantos e quadrantes. Infelizmente, há exactamente um ano o SAAL deixou de ser editado privando-nos de um importante diálogo plural que fluía entre as duas margens do Atlântico e da comunhão de um vasto mundo de vivências do real ao imaginário que a cada edição estampava em suas páginas traduzidas na criação de nossos artistas como os catarinenses-ilhéus Semy Braga e Vera Sabino.
A produção poética e artística de Semy Braga (1947) está impregnada pelo seu jeito franco de olhar a condição humana, reafirmar tradições culturais e valores estéticos gerados na Ilha-mater, perenizados, tecidos pela sensibilidade do poeta em sua peregrinação por tantos caminhos do universo ilhéu, habitado pelo fantástico, pelo pescador, pela rendeira, por figuras folclóricas, por vozes de todos os cantos que se espraiam na sua poesia e na sua pintura.
Ambas ressoam libertas, míticas e oníricas, comprometidas com a beleza e a ética, expressas na filigrana delicada de cada poema, de cada quadro. Sua pintura e sua poesia caminham juntas em sintonia. Estilo que se identifica na temática, no rigor da criação, na tessitura do poema e do quadro, provocando a mesma tensão, como um chamado à sua fruição. Não é temerário afirmar que sua pintura é poesia e sua poesia retrata imagem visual, uma por dentro da outra ou vice-versa.
Semy aparece como artista plástico em 1967, em exposição individual no Museu de Arte de Santa Catarina. Na poesia, estreia 1983 com Despertar de um anjo azul, uma pequena edição, manuscrita, ilustrada por ele em parceria com sua mulher, a pintora Vera Sabino, e pelos amigos artistas Eli Heil e Vecchietti. Uma verdadeira preciosidade! Reaparece em 2004 com Esquina do Luar. No ano de 2005 publica Madrugada Acesa. Tem prontos mais dois livros:Jardim dos Aromas e Na Ilha Embruxada. Presente em inúmeras antologias, inclusive nos Caminhos do Mar (2005), antologia, organizada pelos poetas Osmar Pisani e Urbano Bettencourt, que celebrou o encontro de poetas açorianos e catarinenses numa longa travessia de aproximação de mundos apartados no tempo e no espaço, sendo de sua autoria o quadro Divino que ilustra a capa da referida obra.
Na pintura como no poema revela de forma concatenada os significados manifestos e deixa fluir o latente na sugestão da cor, no palpitar do verso. Assim, sua pintura se espalha por sua poesia e prosa, enquanto imagens visuais invadem a literatura, se completam e compõem, flutuando entre a dimensão do imaginário e da realidade: paisagens, alfaias, personagens todas numa grande cabala como se cumprissem um fadário. Cenários armados por mãos açorianas, seculares, na argamassa do forte, na atafona, na roda do engenho, nos cruzeiros e igrejas, no canto das sereias, no feitiço das bruxas.
Na pintura, a técnica pictórica corporifica no traçado vibrante, etéreo, mágico, o uso despojado da cor. Nada é supérfluo. Tudo se configura desde a composição surrealista da paisagem bucólica ao mistério do cenário solitário, quase nostálgico, visceral, repleto de saudade de um lugar seu, utópico, outra ilha – na outra margem do Atlântico? Sim, o imaginário ilhéu presente ou habilmente insinuado como num jogo de sedução, na dialéctica dos tons quentes e frios, mas sempre a profundidade do senso cromático explorado em todas as suas nuanças na composição de sua paisagem feiticeira, de sua arte.
Poesia forte, linguagem expressiva, madura, respira emoção, provoca devaneios, sonhos alados, mexendo com o imaginário, deixando fluir o pensamento numa dança de pura magia, como o ondular enamorado do mar em noites enluaradas, na sua Ilha embruxada de Santa Catarina por errâncias infindáveis.
Quero queimar até o pavio
ouvir o canto da Lagoa
engolir a luz das madrugadas acesas
Quero queimar até o pavio
andar no limite
errar, sangrar e repetir
Quero queimar até o pavio!
(In: Madrugada Acesa,2005:73)
A poesia de Semy espelha o viver na sua Ilha – o território físico e a sua própria insularidade – o espaço simbólico que emerge de dentro de si (Às vezes/faço poesia com o canivete./Vou esculpindo o poema/na minha carne. In: Jardim dos Aromas) em imagens fulgurantes e nesta solidão criativa extravasa o mítico, o imaginário fantástico, iluminando o fazer poético, levando-nos a saborear palavras, sílabas, musicalidade, ritmo, sentimentos, imagens do presente, outras deixadas para trás no arquivo colectivo da memória de nossa gente que ele insiste em salvaguardar:
Sobre a pequena mesa de granito
O bule esmaltado reflete-se,
multiplica!
Fumegante,exala segredos
Guardados no tempo.
Bule Azul, in: Esquina do Luar,2004:61
A imensa carga de crenças, superstições, fabulário, estórias bruxólicas contidas no quotidiano, parte significativa do acervo espiritual ilhéu, inspira sua poesia e sua pintura. Além, é claro, de falar do legado cultural açoriano ilhéu, no registro apaixonado de imagens d’além mar ao encontro de suas raízes nascidas em meio às rochas vulcânicas, como a videira que brota nas fissuras da pedra negra lá na Ilha do Pico, e ali sentir a humidade das lhas, o soprar dos ventos nas faias, descansar o olhar no azul das hortênsias ouvindo ao longe o som mágico da viola da terra. Raízes reencontradas e alimentadas no deambular do poeta e do pintor.
Da pequena alcova
recendendo a faia
vaza sem parar
oceano de saudade
Mãos delicadas
tecem lentamente, rendando a face
Como se na ponta do fino fio
estivesse o amor.
(in: Madrugada Acesa,2005:105)
Sua obra artística e sua poesia revelam o amor do poeta e do pintor em suas andanças pela Ilha de Santa Catarina de tantas vivências, histórias e imagens partilhadas. Imaginário do pintor, imaginário do poeta alçando voos de puro encantamento no tempo e no espaço por sua Ilha de Santa Catarina e por outras Ilhas de afectos fecundos.
Te encontrei
Flutuando no horizonte
Como se o destino
Estivesse escondido logo ali
Pertinho da imaginação.
(In: Madrugada Acesa, 2005:31)
Vera Sabino (1949), há mais de trinta anos é um dos ícones das artes plásticas contemporâneas e uma das mais notáveis pintoras catarinenses. Define-se autodidacta, defino “esplêndida”. Tem uma pintura madura moldada num mundo figurativo de muitos tons e cores. Uma fascinante unidade formal, um repertório de historicidade e de tradições alicerçadas no substrato açoriano sobrevivente no litoral catarinense, onde a plenitude do olhar debruça-se sobre a efervescência do seu imaginário e do imaginário ilhéu. Um olhar doce que deixa aflorar certo apaziguamento interior em justaposição com um olhar de guerreira, de energia pura, de esperança, de crença e de luta pelos valores essenciais da sua terra, do mar que a rodeia, da vida que levita no vendaval de mudanças que assola a sua Ilha, abençoada por Santa Catarina de Alexandria, que tanto ama e defende.
O primeiro prémio chegou quando ainda estava na escola secundária em 1964. E nunca mais parou de pintar e faz com imenso prazer e talento. Foi no ano de 1969 quando obteve o primeiro prémio no Salão de Artes Plásticas para Novos em Curitiba (Paraná) e realizou sua primeira exposição individual que começou a construir a admirável trajectória artística que a cada passo ou a cada obra se supera.
Vera Sabino é incansável artista do fazer e do saber ilhéu, acrescenta sempre, desvenda, reinventa, decifra enigmas entrelaçando na linguagem plástica e na apurada técnica, por ela inventada, um mosaico de cores, de tons quentes, de intensa luminosidade, da sensualidade das formas que transparecem no universo mítico de Vera onde tudo cabe e é permitido, no ténue fio que conduz e ao mesmo tempo separa o real do irreal.
Na comunhão do inconsciente com elementos da paisagem, o microcosmo ilhéu em movimento se revela em metáforas visuais e preciosa policromia. Dessa maneira, sua obra apresenta-se como uma surpreendente narrativa visual. Passeia pelas tradições e pela memória colectiva, revisita mitos, na sua inquietude e rebeldia quebra padrões estabelecidos e deixa fluir a riqueza do imaginário insular.
Ao fazer de sua arte instrumento de resgate e preservação do património cultural imaterial, transpondo para seus quadros símbolos, rituais, religiosidade, canoas, tarrafas, rendas, tramóias labirínticas, laelias purpuratas, bromélias, crenças, mar, serpente, mulher, bruxas, rompe a visão estática do passado e vai ao encontro do nosso passado sem ser passadista, como bem escreveu o escritor Mário de Andrade em carta a Paulo Duarte: ”Entre ser passado e ser passadista há uma grande diferença, diz ele. Goethe era passado mas não passadista. Passadista é o ser que faz papel de carro de boi numa estrada de asfalto.” (in: Veloso e Madeira 1999:115)
Adepta do realismo fantástico, faz uma relevante leitura visual do etnógrafo Franklin Cascaes e das estórias publicadas na sua obra O Fantástico na Ilha de Santa Catarina, da qual resultou a série bruxólica, em homenagem a Cascaes, com imagens pintadas dos contos: Balanço Bruxólico, Bruxas roubam lancha baleeira de um pescador, Congresso Bruxólico, Eleição Bruxólica e Mulheres bruxas atacam cavalos. Na coreografia embruxada, a paisagem imagística é cenário e ocupa o espaço circundante, enquanto as mulheres-bruxas estão no primeiro plano, como é característico da presença permanente da figura feminina em sua obra.
Vera Sabino percorre os caminhos, descortina a magia, e entre vivências e convivências busca inspiração no jeito de ser e estar na Ilha, nas lendas, rezas, fadário, sensações e sem qualquer inibição retrata a Mulher. Mulheres se multiplicam, metamorfose, imagem sensual, insólita reinvenção, sortilégios de sua arte. Medusas adornadas em suas cabeças com peixes, seres marinhos, cobras, pássaros, flores, numa composição encantada; rendeiras de olhos pretos profundos, cheios de sensualidade e vívidos como o olhar da gaivota a espiar rotas; sereias emergem, antropomorfas tentadoras, no meio do mar cavado, cristais de ondas, cabeleira de espumas, corpo rendado de escamas em contraste com o rosário hagiográfico de suas madonas, santas e via-sacras, por último, bruxas da Ilha, feiticeiras, nuas ou vestidas, corpos de puro desejo, seios fartos, boca carnuda, vermelha, imagem exuberante. Mulher e Bruxa. Bruxa-mulher.
“ Bruxas disfarçadas de pitonisa ilhéia”, sugere o poeta Lindolfo Bell no ensaio Vera Sabino: Triunfo da Transfiguração (2004:p.6).Imagens femininas, bruxólicas, emprestadas da mitologia como Circe, a feiticeira da Ilha de Eéia, de longas tranças, a tecer a tela da imortalidade.
Entre o real e o imaginário não há fronteiras. Apenas, tangem o insondável e se cruzam no tempo. O tempo da Ilha, o tempo de Vera Sabino e de Semy Braga, vozes libertas, asas aladas de seu imaginário – alimento da alma – traduzidos na sinfonia de palavras e imagens de sua arte. O universo de Semy Braga e Vera Sabino revelam a herança de uma partida, de uma chegada e jamais de um regresso.
Ilhas das minhas paixões-vivas
Guardadas pelo oceano
Lélia Pereira da Silva Nunes
23 de março de 2007
Aniversário de Florianópolis
Ilha de Santa Catarina
Click here to add your own text