EXPOSIÇÃO MASC
20/11/2003 A 25/01/2004
20/11/2003 A 25/01/2004
Uma pintora das flores
“Eu aprendi pela cadência, tirando do juízo”
Mestre Vitalino
Da Espanha do reservado Sánchez Cotán (1561 -1637) aos Países Baixos do pletórico, profuso, minucioso Frank Snyders (1599-1657), já em fins do século XVI, quando deixavam os recantos secundários das pinturas, onde desempenhavam o papel suplementar de retoque cenográfico, para brilhar no primeiro plano, com exclusividade, os bodegones ou naturezas mortas passariam a denotar, ao mesmo tempo, o respeito decorativo ao cotidiano e a veneração crescente pela opulência do mundo vegetal. Não tardariam os Franz Post da vida a vir copiar nas terras de cá a novidade dos frutos exóticos.
Afeiçoados pêlos herbários, acordes com a botânica, adaptados ao sentido de prosperidade próprio da burguesia comercial, que lhes permitia recortar da própria vida um fragmento revelador da abundância-a mesa com seus pertences e adereços-e aliando este sentido ao sentido de beleza que os ateliês flamengos encontraram nos arranjos florais, com aqueles dados empíricos que eram as suas telas, ouso postular aqui, os pintores que concebiam as flores em sua despreocupada gratuidade precederam as posteriores teorias do gosto, as da “forma viva”, anunciaram um dos cernes da doutrina estética de Kant, a noção do desinteresse, e acabaram por prefigurar, em fim, a noção de arte/jogo, que viria em seguida. Com as naturezas mortas emergem, assim, dois fatos complementares da sensibilidade cultural: a admissão da beleza pelo prazer que ela dá e a valoração do capital como meio de consumo (e ostentação). A suntuosidade ilusionista dos quadros de Jan Davidsz de Heem (1606-1683) ilustra bem a circunstância.
O vaso de flores, em seu isolamento na tela, exemplifica a substantiva expressão feliz, a conveniência, a empolgação primária, o splendor formae que o espectador contempla esquecendo-se de si, não importando minimamente que se trate ou não da epifania de mais um dos transcendentais. O arranjo floral, na pintura da época aparece qual apoteose do microcosmo: uma rendição, egrégio vestíbulo, ninho vegetal. Mas, antes de tudo, qual festa para os olhos. Flores, frutos e legumes: deles se servirá Arcimboldo em suas montagens transformistas, no momento em que os produtos da natureza foram capazes de ocupar a posição do próprio homem, para evocar este último, intranscendentalmente, através de um puzzle, ou melhor, por um jogo de imagens cruzadas.
As flores, as still lifes da seiscentista portuguesa Josefa de Óbidos e as de seus assemelhados contribuíram para dotar o gênero com ingênuos encantos mediante os quais, tons negros, na verdade tenebrismo de superfície, faziam sobressair, como jóias, as ilhas de cor. Para enriquecer a galeria dos sublimes, encabeçada por Heda e Zurbarán, talvez por Kalf (1622-1693) veio Beaugin; depois veio Chardin, abalizado nas delícias da simplicidade. Sabe que guarda um tesouro o museu que possuir, ainda que na reserva técnica, e com seu ar old fashioned, um ramalhete de rosas executado por Fantin-Latour. Na França pré-modernista Odilon Redon procura submergir as flores na bruma e num plano de alusões. Van Gogh, pintor de cadeiras e sapatos, entitativos e perturbadores, com seus girassóis, plenamente as arremessa para a metafísica, para o mergulho na alma. Visualmente panteísta e de novo burguês, o Impressionismo recupera, com a falência dos grandes temas, a dignidade das flores em buquê.
Na tradição modernista brasileira, o vaso com flores, ainda que de modo incidental, nos momentos de repouso, diríamos, compõe uma sequência energética que vai de Portinari, Rubem Cassa e Guignard a Glênio Bianchetti, Carlos Scliar e Márcio Sampaio, passando ademais por Volpi e uma extensa linhagem de pintores ora muito bons, ora não tão excelentes. Saboreamos hoje com olhar admirativo e bem humorado o encanto das “flores cubistas” que Anita Malfatti pintou nos anos 50.
O tema perdura e resiste ao tempo, servindo já aos propósitos da alegoria, senão aos do símbolo, já aos da pura forma, da construção, da estrutura, já, por fim, aos imperativos do lúdico, do instante, da evocação do infinito.
Para sua exposição no MASC, a artista Vera Sabino, uma das mais notórias e notáveis de Santa Catarina, pintou uma série de 12 grandes telas representando vasos com flores. O resultado é uma exposição reiterativa, mas antes de tudo uma exposição singular, que surpreende pela força das imagens.
Vera Sabino maturou a pintura na criação de um mundo figurativo que entendeu moldar sobre três vertentes temáticas, relevantes para o seu imaginário e para o de grande parte dos habitantes de Florianópolis, cujos pais e avós viveram tradições de muito colorido e tom local. Para não falar em bois de mamão e outros folguedos populares, pergunto: quem, digo entre os antigos, não se lembra do mar dourado das laranjas luzindo, à noite, na festa da Trindade? Em primeiro lugar temos o repertório fabuloso do substrato açoriano do litoral catarinense, em especial o da Ilha de Santa Catarina, com suas lendas e tradições. Em segundo lugar vem o repertório hagiográfico, que faz dela, Vera, uma verdadeira e própria pintora religiosa. Em ambos os casos foi necessário adotar uma linguagem narrativa e um objetivo expressivo Considerando-lhe o processo fabulativo, podemos distinguir duas etapas seguidas no condicionamento visual de sua experiência pictórica. De um registro antes solto, anárquico, cuja característica mais evidente é uma espontaneidade por assim dizer febricitante, (anos 70) Vera passa a um fazer construtivo mais controlado. Este, não obstante o rigor da estrutura, conserva o transbordamento de informações visuais próprio do trabalho de outros artistas importantes da Ilha, como Eli Heil ou Ernesto Meyer Filho. A aridez, pois, não faz parte de sua gramática, mesmo quando se trata de sintetizar.
O marcante maneirismo aparentemente estereotipado, mas verdadeiro manancial de soluções pontuais, parece apropriado ao teor expressivo que a situação temática requer. Por último, o terceiro repertório a considerar, diz respeito a uma espécie de paisagem evocadora da ” Ilha da Magia” e, por isso, sob o ponto de vista plástico, pouco dista dos dois conjuntos anteriores.
A imersão nas raízes, reais ou fantasiosas, de qualquer modo ancorada nos valores culturais/ religiosos da terra, onde não faltam os episódios “bruxólicos”, que o pintor Meyer Filho também trataria a partir de sua bem humorada poética erótico-anedótica, traz à pintura de Vera uma força de resistência, que tem sua relevância em um local que cada vez mais, e rapidissimamente, mercê do afluxo de artistas cosmopolitas vindos de grandes centros, perde a ligação com as origens. Como teoriza a nova doutrina dos patrimônios culturais, preservar não é agir pensando no passado; é avaliar para o futuro. Sendo assim, uma das formas legítimas da preservação pode ser (por que não?) a da criação artística quando se apóia, obliquamente por certo, porém de modo figadal, na motivação de base. Variante desse possível método é o armorialismo, tão forte na arte pernambucana, por exemplo. Vera, entretanto, não se enquadra entre os armorialistas. No aprofundamento do vernáculo, ela está atenta a tudo, absorve o máximo possível; revisita e relê a própria pintura bizantina, aprendendo com ela a impostação hierática, além do uso do ouro e o magnificar dos olhares. E nisso nada tira dos livros, tudo da vivência: não nos esqueçamos que foi animosa em Florianópolis a emigração dos gregos, o que deu azo à cidade a que se dedicasse também à devoção com os ícones.
Um divertículo na temática, e na estética de Vera Sabino e, para mim o mais aprofundado aspecto de seu trabalho, encontramos na série de vasos de flores que tem sempre pintado. Em geral, para que não se deixe de marcar um sentido alegórico-simbólico dessa série, os vasos se postam frente a uma janela aberta que, guarnecida ou não de cortina, permite divisarmos, para além do recorte, a procissão icônica dos elementos a que deseja aludir: figuras de festas folclóricas, objetos rituais de arraigadas devoções, rendas do lugar, leves, labirínticas. Aqui, porém, não falaremos nas implicações simbológicas das janelas e das cortinas. Há quase sempre nessas imponentes naturezas mortas o exercício da simetria, que encerra outros tantos subentendidos simbólicos ou não. Nelas se instalam solenes cristalizações, pretextos para malabarismos compositivos feitos de feixes de linhas que demandam os pontos cardeais e, sobretudo, a ocasião de brincar, na maior seriedade do mundo, com o mundo da cor.
Agora sim, após a cursividade do improviso, o ascético domínio, ainda que não a contenção total. Doma de temperamento para a conquista da integridade. Em nível de poética, passagem do expressionismo para atitude cerebralista.
Há portanto, duas Veras Sabino. Uma, a primeira, encarna a caminhante: aquela que percorre aflitamente, e fraseológicamente, os caminhos fabuladores de diversas sagas; que produz pintura desinibida, expositiva, paroquial, nativista e que além disto se agrega à história da arte, pintura cujo excesso leva ao barroco, ou ao superlativo bizantino. E a artista entretém-se em lidar com a superabundância naïve, que não poupa as recrudescências da linguagem e se compraz com a compaixão que se expressa pêlos sentimentos congelados dos atores, com a exaltação pela qual os gestos se multiplicam ao sabor do entrechoque de linhas e contornos cheios de ambívios, da fragmentação espacial, da ambiguidade das direções. Dessa vez uma Vera apolínea pelo excesso de dionisismo, pois é sabido que a tensão máxima gera o reativo.
Outra, a segunda, é a Vera que serenou-se, que refreia e refina as sensações visuais, pintora que se deixa estar e que não quer-se ilustradora nem da revoada das feiticeiras, nem da paixão dos santos, a Vera a quem não interessa a busca e o acúmulo, a Vera que ao invés de procurar, encontra. A Vera dos quadros de flores. Autora de uma pintura em que o artístico e o belo acabam, ( de novo) se tocando. Vera, senhora do desnecessário: dionisíaca, dessa outra vez, a poder de se deixar orientar pelo apolíneo.
Se o sentimento romântico da natureza foi a fonte da pintura da paisagem, já que, apartando-se, a natureza se transforma em desejo, em promessa, a motivação básica da pintura de flores, por sua vez, se acha no sentimento do íntimo, da simpatia: o desejo de compartilhamento, em esfera doméstica, que nos permite uma posição insular e, com ela, a fruição do nosso isolamento. Ela representa o poder ter a natureza, com segurança, ao alcance da mão. E Vera, porque esta é sua natureza, dá-lhe um aspecto devocional.
Não é de estranhar-se, então, que as flores da artista desterrense, com os requintes de iluminura e a imperativa frontalidade, ao contrário da maioria das representações florais na história da arte, pendam para a permanência e não para o fluxo. A ordem flutuante dos dias que correm legitima esse tipo de compensadora aspiração. E aqui, de novo, encontramos nova sintonia com a estética da construção. Pois não disse Valéry que devemos exprimir na oposição ao “próprio destino do mortal” ? E não disse que devemos criar, “em suma, a solidez e a duração”? Embora, no trabalho, seja Vera um dos artistas mais rápidos que conheço, suas naturezas mortas denegam a pressa, postam-se como num tempo prolongado, fixo como o tempo próprio dos mitos e não como o do tempo processual da história. A representação das flores auxiliam-nos, de modo exemplar, em nosso exame de delimitação do mundo. As flores constituem uma totalidade visível. Pela concentração do foco, a situação de incerteza e de instabilidade que rege a relação sujeito-objeto, e a fragmentação, tendem a ceder lugar à unidade. A pintura de flores permite viver, com certa naturalidade, aquela delimitação cujo “princípio constitutivo”, de acordo com Simmel, “não é uma idéia ou uma essência espiritual, mas antes, um vivido estético, o sentimento de uma visão realizada em si, percebida como unidade auto-suficiente e ao mesmo tempo entrelaçada com alguma coisa mais vasta”. O interesse pelas flores não está descontextualizado: Florianópolis e os arredores abrigaram alguns dos mais famosos orquidários do mundo.
Vera retoma a representação, ou melhor, a apresentação do universo floral com tanta dignidade, com tamanha e alumbrante calma e segurança, que se torna esse episódio de sua arte, entre os mais, o mais depurado e íntegro. Nele os vasos coroados de flores (onde sobressaem o branco dos lírios e o vermelho das campânulas) afetam a concentração dos relevos, o requinte dos emblemas, a solenidade das jóias heráldicas, o inconsútil das tapeçarias. Nem predomina a natureza, nem prevalece o homem; ao invés disso, vigora o encontro desses dois pólos, de que nos fala a estética construtiva.
A natureza morta, que já foi em idos tempos uma especialização, e no Brasil, em sua época, a glória de Pedro Alexandrino, agora se transforma em escolha, escolha que se destina aos momentos mais íntimos e mais altos.
Não é difícil notar nesses vasos com flores de Vera Sabino certa composição arquitetônica. Eles se articulam como indestrutíveis catedrais. Mas também há neles leveza, como a das baladas; e rimam como sonetos, e se matizam como mosaicos preciosos. A seriedade que os envolve nos toca como se fosse alegria, que prestes se exalta com ajuda das minúcias da elaboração, com as particularidades miniaturísticas. E os arranjos adquirem a semelhança de tiaras de noiva, de custódias ou, para aludir à figura representada em uma das pinturas da série, da coroa do Divino Espírito Santo.
Que exprimem essas flores suntuosas, emblemáticas? Otimismo e aderência ao mundo? Prazer de viver (ainda) em uma ilha que já foi quase paradisíaca? Uma estética do fragmento, visível no apego aos pormenores? Ou apenas a prestidigitação incomum da cor, a mais inventiva que possamos desejar, sobretudo se sabemos, como é o caso, que a pintora manipula apenas quatro tubos básicos de tintas, afora o do branco? De onde vai ela tirar o despotismo desses “batizados” vermelhões, a variedade desses verdes-cana que se alternam com o malaquita das egretes vegetais vigorosamente eretas, a riqueza desses púrpuras sustentados no timbre mais intenso; aonde vai buscar o diapasão desses rosas virgínios, e os metálicos, ambarinos e desusados laranjas, para não falarmos naquela gama acrobática de azuis, de muitas profundidades e de todas as temperaturas? Além disso é preciso lembrar a matéria pictórica, que molda a qualidade palpável da superfície, façanha tão rara da pintura, mas que se mostra gorda, boa, abastada, transparente, cheia de viço, e impressiona ao ritmo de insinuações tácteis, ao sabor de impressões sensórias, e cria superfícies ventiladas, porejadas, orvalhadas, deslizantes ou crespas conforme a conveniência. Tudo com destreza de causar inveja! Vera sabe bem que se a pintura não for bem feita não sobra nada. Então há que dotá-la daquele imponderável fator que desperta (ou não desperta) o interesse não apenas de nossos olhos, mas de toda a nossa sensibilidade; daquele encanto sem o qual toda obra de arte será uma equação vazia. A pintura é uma arte ingrata, porque alcança fascinar, ou não; porque depende da densidade do fazer, de um domínio de expressão poética que não deve atingir os adeptos de alguma seita, mas a audiência interessada na , ou capaz de ser “tocada” pela obra de arte, capaz de captar sinais. E se oscilando entre o realismo e o decorativismo, percorre perigosamente caminhos trilhados, fica sempre mais difícil para ela manter-nos suspensos no laço do encanto, que é o que deve fazer.
Se Chikamatsu, citado por Octavio Paz, tinha razão quando disse que ” a arte vive nas tênues fronteiras que separam o real do irreal” então o artista não tem que nos comprovar nada; pode isentar-se de qualquer compromisso com a demonstração. Na materialidade da obra de arte, o encanto age como toque que serve para separar o talento da mediocridade, a eloquência do mutismo e, já crismado na língua inglesa com a palavra “dither” (cf. Harold Spead) o toque acende a luz onde havia turvação e afia a lâmina para que nos cortemos. Porque, afinal, a experiência da arte é um risco. A natureza desse toque é enigmática e o é mais ainda sua gênese. Como se pode explicá-lo a priori ? Quem o pode transmitir ? De onde tirou alguém destreza para fazê-lo? Pelo menos podemos, a título de hipótese, convir que na arte ocidental, há uma certa relação entre encanto e beleza. Desta relação, porém, devemos afirmar apenas que o primeiro se põe como posição per quam da segunda, que esta só realmente esplende e toca, fazendo da opacidade translucidez, se com ele estiver carregada: o poder do encanto é a pilha da beleza.
Dizem que o pintor quanto menos disser, melhor. Se a obrigação apenas o incumbe de manter-nos presas do encanto, e o poupa de preocupar-se com demonstrações, o que sobra é algo que podemos aproximar da beleza. Mas não é menos certo que mais de um século de repúdio oficial ao belo como categoria estética da arte varreu esta noção para baixo do tapete. Sabemos, porém, que ela, roubada que foi pela comunicação de massa, que a estabelece como regra, impõe-se a todo instante, em toda parte. Pode dar-se o caso de que a beleza constitua uma armadilha, tanto para o sujeito quanto para o intérprete, mas se o é, tem força para sê-lo: responde a um impulso cheio de poder. Sabemos também que a beleza da arte não é a beleza da vida e só na medida em que a esquecemos conseguimos compreendê-la. De qualquer modo, o objeto da arte, tal como o da carícia, implica em uma questão de pele. Em arte, o que vemos não tem a essência do que vemos. Após lembrar que a palavra autor vem de auctor, que em latim significava “aquele que aumenta”, Ortega Y Gasset nos diz que “o poeta aumenta o mundo, agregando ao real, que está aí por si mesmo, um continente irreal.” Por isso Vera Sabino, quando pinta flores, não parte do objeto; vai de encontro ao objeto. E esse objeto, dessa vez, já não se engasta na euforia de um burguês que se afirma, como em outros dois momentos da história da pintura. O novo sentido das flores na arte pode estar relacionado com as doenças da alma, trazidas ao cotidiano do homem por certo efeito da sociedade tecnológica, que o torna solitário no meio da multidão.
Kant ou Schelling, precedendo Wilde, ao conceber o segundo a arte como regra da natureza, e o primeiro, ao afirmar que “a natureza é bela quando tem a aparência da arte”, ambos e mais o inglês que os seguiu, e disse que “a vida imita a arte” , intuíram que a visão do artista nos condiciona para um novo olhar sobre os cenários do real. Vera exemplifica tal circunstância, contraditória na aparência. Suas flores se investem de uma natureza necessária. Integram um sistema de articulações indispensáveis, quando a poética se esconde, se recolhe, se desmecaniza para o pleno alcance de uma realidade rebelde à análise, que se dá como esconderijo do ato e consagração da presença. Na ausência. Não é a flor que interessa, mas o que Vera acrescenta a ela; não só de forma como de fervor, e de prazer. Isso é normal, sendo a função da arte não uma atividade inteligível (destinada ao entendimento) mas um fazer compreensível (destinado à compreensão). “A beleza ganha valor só sob uma perspectiva distante”, escreveu Mukarovski, repetindo o dito de F. X. Salda.
“Ceci n’est pas une pipe”. Quando o cachimbo ali estava para desmentir, na linha do entendimento, esta informação dadaísta, ninguém poderia desconsiderá-la, se a tomasse na linha da compreensão. Um fato artístico está em jogo. Monet, e sobretudo Cézanne, que ajudaram a reformular os estatutos estético-poéticos da pintura, tinham para sempre ferido a validade da representação. Assim, o primeiro fartou-se de pintar nenúfares disseminando-os em um espaço pictórico decomposto, multivalente, pelo menos quanto ao efeito ótico e o outro passou anos e anos a desconstruir e reconstruir maçãs, seu mais belo pretexto. Do impressionismo pode-se dizer que sua fortuna crítica não cessou de crescer. O mercado o atesta, quando negocia por dezenas de milhões de dólares alguns dos quadros que o marcaram. Não deixa de impressionar-nos o fato de que entre as pinturas mais caras vendidas em leilões estejam, na atualidade, as “representações” de flores. Pode o mundo da arte ser um, e ser outro o do mercado; contudo este último reflete, pelo menos em parte, algo que se passa na fronteira da sensibilidade. E a disposição para a beleza faz parte de nossa tessitura sensível, cujos pensamentos “concretos e corpulentos” (Viço) não dispensam uma determinada espécie de perfeição, ainda que a regra vigente da estética, a língua normal, a recuse. Aliás, de modo oportuno asseverou recentemente Teixeira Coelho que a busca do belo ” faz parte da estrutura cultural do Ocidente”.
Levando em conta que a visualidade padrão de hoje afastou a beleza da arte, assumir redondamente o belo, nos dias que correm, tem algo de inusitado. A arte, porém, pertence ao reino do inabitual. Como ensinava Viço, a poesia (a arte) se define como a faculdade “que altera e contrafaz”. Com bastante audácia Vera Sabino se utiliza da beleza para transgredir o padrão, o estatuto que não a deseja. E ao apoiar-se na violação intencional da norma, não retroage, cria neologismos. Como, em recaídas, criou Jim Denis, amador de flores depois da aventura Pop. Walter Benjamin quando disse que “a verdade é a morte da intenção” sopesava outro ângulo da questão para reforçar a idéia da vocação violadora da arte. Mas, não obstante exista o belo terrível – Dostoiewski que o diga – não é preciso recorrerá “terribilidade”, talvez a forma extrema do novo, para que se consume a transgressão: basta algo tênue, colocado em hora certa. Invada-se o mundo da moda, confronte-se a pedra de toque da propaganda, do anúncio; tragam o belo de novo, se isto for julgado oportuno, para o lugar em que pode ser mais fecundo.
Aqui se abre de novo o assunto fechado da representação. Não para dizer que ela está ainda viva, pois que não está, mas para dizer que muito do que passa por representação não o é, já não é, ou ainda não é. Houve tempo em que o cervantino pintor, nas páginas do Quixote, com medo de que duvidassem do que viam, colocava ao lado de seu quadro os dizeres: “isto é um galo”.
Flores. Sem dúvida. Flores, porém, que não apreciamos como flores; que apreciamos como pintura. A grande Ceorgia O”Keeffe, pintora do vegetal, mestra das fusões de cores, da sensualidade sutil e da sensibilidade arejada pelas vastidões, não nos deixa enganar.
Nem é preciso abrir inexplorados horizontes; tampouco dar “lições de abismo”. Não é necessário, vistas as coisas por outro lado, abandonar o êxito comercial, se ele existe. Bastaria tentar entender, sem caso pensado, por que ele existe. Não é necessário exigir reiteradas e sempre mais amplas aventuras de concepção, ou processos operativos que se vislumbrem cada vez mais imprevistos. Grandes nomes da pintura são reiterativos: Inimá de Paula, Scliar, Reinaldo da Fonseca; o homem dos ex-votos, António Maiaeesse Wellington Virgulino, com cuja sintaxe plástica Vera Sabino tanto tem a ver. O importante é que, sem detrimento de certa coerência, que há de firmar o “estilo”, cada quadro surja como acontecimento novo, o que não é fácil de realizar-se com pigmentos, linhas, ilusões de espaços e uma superfície limitada. As instalações, diga-se de passagem, têm muito mais recursos.
Já se foi o tempo da ilha da magia. Discutir o açorianismo hoje é exercício acadêmico sobre um conteúdo em desagregação, ou insistência de festeiros saudosistas. Discutir pintura talvez ainda valha a pena, mormente se ela contém a qualidade bastante para nos atingir com sua carga de universal linguagem. Houve dia em que expor as cinzas de suas pinturas carbonizadas teve para o artista motivo de ser. Talvez seja hoje preferível apostar naquilo que o artista ainda pode realizar, e esperar que algo de perturbador suscite o seu exercício, o seu fazer, a sua construção.
Penso que Vera Sabino está destinada a enormes painéis, coisas de metros de comprimento, que serão exibidos em edifícios públicos ou igrejas. Vera tem muito do artesão finimedieval, quando não existia a arte (art proper) porque o conceito categoria! ainda não fora declarado. Só havia o desejo de trabalhar sempre e cada vez melhor. Vejo-a pintando uma Santa Ceia, de dramáticas proporções. Personagem de sua arte, Vera coleciona bromélias, planta jardins, e cuida deles, e confessa-se capaz de atravessar oceanos, desafiando fiscais com uma mudinha de planta no bolso ou na sacola. Vejo-a pintando imenso campo coberto de flores, que será colocado em uma aeroporto para a simples fruição do deleite; para saturar com beleza, com adequação expressiva, com plenitude ou melhor, como diria Nietzsche, com a expressão de “um equilíbrio perpendicular infalível” a mediocridade de apressados viajantes que, se souberem aproveitar bem a pausa da espera, poderão deixar que seu conhecimento vá colher “para além da inquietação e da fadiga do discurso, o sossego…de seu ato completo…” (Walter Brugger). Porque na pintura desses quadros Vera Sabino, a meu juízo, realizou vitoriosamente a organização da sua Kunstwollen, de modo definitivo diria eu que é uma pintora das flores. No Brasil, uma das mais completas. Afinal, ela aprendeu pela cadência, tirando do juízo …
João Evangelista de Andrade Filho