RAIZES D’ALÉM MAR

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Apresentação


Costumo dizer que uma cidade sem cultura é um mero depósito de gente, sem destino, sem futuro. Por isso, cada obra de arte produzida pela nossa gente enche-me de esperança e fé no nosso potencial como nação – original, soberana, hígida e altiva.

Alegra-me ainda mais a ousadia da quebra de paradigmas e do rompimento de padrões. Umberto Eco, em sua Obra Aberta, nos ensina que “a obra de arte presta-se a diversas visualizações e apresenta perfis cambiantes”. Nesse sentido, este livro radicaliza o conceito, ousando inventar, ousando arriscar, ousando inovar.

Ousadia tributária de outros versos – Navegar é preciso, viver não é preciso -, que nos alertavam sobre como a vida é imprecisa (como é a pesca imprecisa), ao mesmo tempo em que asseguravam a precisão da navegação (como a certeza do barco) e apregoavam a necessidade da viagem.

Assim como o espelho reflete o rosto, nesta obra a poesia revela a alma e a pintura corporifica o espírito.

Nela, a poética seminal de Osmar Pisani procria e torna-se um dos elos de uma cadeia múltipla de experiências, à qual as releituras de Semy Braga e Vera Sabino acrescentam luzes, sombras, volumes, figuras e novos sentidos e sentimentos.


Luiz Henrique da Silveira

Governador do Estado de Santa Catarina

Um pescador que (se) pesca

O pescador pesca a dor? Qual dor?

O Pescador pesca a dor de raízes além mar com as cores universais das tintas e com os ardores da portuguesa língua.

Em qual espaço geográfico estão fincadas essas raízes doloridas do pescador?

Depende. Para as pescas de Santa Catarina, as raízes estão guardadas em muitas direções: em São Paulo dos séculos XVI e XVII; nas ilhas dos Açores do século XVIII; no Paraná e no Rio Grande do Sul do século XX; nos quatro cantos do mundo do século XXI.

Parafraseando e muito mal – o grande Fernando Pessoa, para Osmar Pisani, Semy Braga e Vera Sabino, “O pescador pesca um peixe, pesca fundo e tão avante, que jura ser ele a pesca na luta sempre constante”.

Palavras e cores se abraçam ao longo da trajetória do poema como a proclamar que as raízes d’além-mar estão dentro das águas do ser aquoso que sai para o trabalho em cada madrugada. E nada tendo pescado, ele se pesca a si mesmo: autor e vítima do Sacrifício humanizado.

O autopoema de Osmar Pisani se corporifica num mar desenhado em ritmos quando um verso de frases curtas se encadeia (quase) sem pontuação e sem maiúsculas, como a gerar ondas amorosas para que não espantem o peixe que navega sobre as águas à cata dos peixes que residem lá no fundo.

Assim, o barco, um peixe arco, em rápidas passadas atinge a meta para que mais pequena (como se diz em Portugal!) seja a dor de não pescar nada para a boca da mesa parca.

    O poema também é mar nas cores e nos contornos das imagens de Semy e Vera quando elas se fundem e se fusionam num Único como se Tudo estivesse corporificado na tinta líquida, também a correr sobre a vida plantada em cada um dos quadros.

A composição do poema melhor, dos poemas, edificados pêlos sons da palavra e pelas cores da tinta, – todo o Poema respira pesca-peixe-pescador, uma nova trindade, muito sagrada, cujas raízes num além do mar que alimenta o tempo e o espaço, expulsos do Paraíso Terrestre para serem jogados nos barcos da Vida, tecida com redes, com tarrafas, com os bandos de cardumes e de gaivotas.

A medida que o leitor navega o poema, ele, o leitor saboreia a aquática saliva; penteia o mar em anéis; admira as ondas que se ajoelham de cansaço; lambe os nervos do vento que lhe afagam as mãos.

A transubstanciação pescador-peixe é um mistério profundo que se instala nos mesmos olhos, na mesma boca, na mesma pele, no mesmo corpo em cada poema.

Ao fechar a navegação, o pescador é um ser aquoso, vestido de estrelas do mar, e que inventa um tempo-bom para o êxito da autopesca. E quando o pescador arpoa a própria esperança, a metamorfose se completa: as raízes d’além- mar estão plantadas no barco e no corpo de um pescante a pescar – se na própria consciência de que só é pescador aquele que se pesca na dor.

Celestino Sachet
Da Academia Catarinense de Letras



As Cores dos Versos da Ilha


Mareei Duchamp certa vez intuiu que o artista somente poderia alcançar uma expressão mais profunda em sua obra se, como Alice no País das Maravilhas, pudesse atravessar o espelho da retina. Como tal travessia está intimamente associada a um mergulho para dentro de si próprio, a tarefa torna-se um pouco mais complexa quando o criador já parte da obra de outro artista. No presente caso, a ilustração do poema Raízes D’Além-Mar, de Osmar Pisani, configura-se, pois, uma dupla travessia, um duplo mergulho em que a obra torna-se uma releitura, uma recriação.

O que dizer então do crítico em sua tentativa de trazer ao público algo novo, inusitado sobre a obra? Tripla travessia ou triplo mergulho? Tarefa tão irrealizável quanto desafiante, dada à impossibilidade de abranger todos os aspectos da obra em um simples comentário. Ponto de partida para algo que de antemão percebemos como limitado e extremamente parcial. No entanto, a provável limitação não inviabiliza a experiência de reflexão, mas sim, ao explicitar a parcialidade da crítica, proporciona ao público fruidor o ensejo de múltiplas outras leituras. É, pois, um convite a contemplar, adentrar, ouvir e dialogar com a obra, uma vez que toda obra cria uma metalinguagem, um discurso visual silencioso e pleno de significados. Silêncio primário?

As obras dos artistas plásticos Vera Sabino e Semy Braga, aqui reproduzidas, apresentam-se como narrativas visuais, mais como alegorias do que propriamente ilustrações descritivas e lineares do poema. Nelas acontece um entrelaçamento, um complexo cruzamento com a poesia, mas, no entanto, as imagens pintadas criam sua própria narração, pois não se atrelam ao texto poético, mas sim remetem ao sentido figurado por ele sugerido. É como se a pintura pescasse a imagem da poesia, os artistas pintassem o sentido nela presente, metamorfoseando o poema em imagem visual, assim como o pescador pesca a dor. Desta forma, o conjunto das obras interage com a poesia, pois as imagens têm raízes no poema, mas vão além do mar das palavras formando com ele uma complementaridade plástica afinada. Coreografia da vertigem?

Na intenção de não incorrer no deslize, de catalogar as obras em movimentos estilísticos previamente determinados, entendemos ser mais construtivo apreciar as criações de Semy e Vera simplesmente como pinturas figurativas mergulhadas nas raízes d’além-mar culturais açorianas. No entanto, os próprios artistas anunciam-se partícipes do Realismo Fantástico Ilhéu, uma escola artística bem peculiar da Ilha de Santa Catarina, que se desenvolveu a partir dos estudos de Franklin Cascaes. Inserem-se num grupo de artistas atrelados ao mesmo “fervor da ilha”, que trazem para suas obras os autênticos valores culturais locais. Semy e Vera, além da origem ilhoa, têm se alimentado desta cultura ao longo dos anos que residem na Costa da Lagoa, fonte ainda em estado de pureza; segundo eles, experiência existencial que lhes dá todo o respaldo e atesta a veracidade das obras.

A temática, como não poderia deixar de ser, é o pescador, seu cotidiano em terra e sua aventura no mar, rodeado de elementos que compõem sua identidade sócio-cultural imaginária. As pinturas evocam paisagens e situações do interior da ilha, bem conhecidas de todos nós, seus habitantes, oferecem-se como flagrantes do dia-a-dia ilhéu. Ao primeiro olhar, alguns pontos atraem nossa atenção: o valor alegórico e simbólico das imagens, o preciosismo da policromia, bem como a sensualidade das formas que definem as paisagens e os elementos do imaginário marinho, nem sempre claramente presentes no poema. A organização do espaço pictórico em si extrapola ou mesmo prescinde das regras de composição visuais formais, o que acentua as singularidades e os estilos diferenciados dos dois artistas.

Paisagens da alma na poética Semy

No conjunto das obras que ilustram o poema, Semy compõe o cenário externo. Suas pinturas configuram a síntese de bucólicas e românticas paisagens do litoral da ilha, retratos da tranquilidade dos pescadores imbuídos de suas origens açorianas. É o litoral revisitado, são paisagens nas quais a essência é dada pelo predomínio da cor, numa composição despojada, excluindo detalhes ou complementos que poderiam parecer supérfluos. Composição que certamente configura-se como masculina em sua concepção. As paisagens são limpas, alisadas e nos convidam a pensar, a especular sobre o que estaria escondido no fundo de tanta calma e despojamento. Exprimem a quietude, a profundidade da aparente calma e estabilidade dos cenários da narrativa, através de panoramas desabitados, solitários, abandonados. De feições muitas vezes nostálgicas, escondem sentimentos bem mais intensos em seu interior. Sentimentos do dia-dia desta nostalgia?

Podem ser vistas quadro a quadro, como cenários de uma estória atemporal, semelhante à aventura do pescador que parte com a esperança e a incerteza da volta. Representam o local dos acontecimentos: a beira-mar, os morros, a água, as pedras, as casas e capelas, mas concomitantemente nos transportam à outra dimensão do tempo, a um lugar quase utópico.

Utilizando técnica pictórica precisa, o artista estende a tinta ao máximo, fazendo com que as cores se diluam em tons os quais, por sua vez, sofrem fortes contornos que delimitam as formas. A essência do que a pintura presentifica manifesta-se por meio da cor, que é elaborada, refinada e tratada com vibrante intensidade. A monocromia do mar, através da densidade dos diferentes tons de azuis, marinho, ultramar e outros, faz referência à profundidade do oceano, como sendo ela ao mesmo tempo uma ameaça e uma incógnita que nos desafia. O clima marinho é ainda enfatizado através de rica gama de verdes e de azuis esverdeados, profundos e calmos, por vezes até assustadores, presentes nos limos-peixes e musgos, criando paisagens etéreas. Em determinados momentos a voluptuosidade de certas cores, como no caso do vermelho intenso contrasta com a suavidade e profundidade da coloração do mar, ora mar matinal, ora crepuscular. Este jogo de tonalidades e contrastes intensifica as sensações alimentando a tensão presente nas obras, seduzindo o leitor na medida em que arpoa a própria esperança.
Seriam tais paisagens retratos de uma solidão pungente?
Paisagens do crepúsculo?
Ou do amanhecer, manhã de asas?

A volumetria é alcançada pelo tratamento da cor que confere modelado ao mar, às montanhas e aos outros elementos. Estes volumes arredondados, por vezes implicam em conotações viscerais, como as formas circulares, que contornam as baías, as montanhas, as pedras tranquilas, as pedras longas. Junto com as formas pontiagudas das árvores e de outras plantas, criam um certo ritmo nas obras. Observamos que geralmente o elemento principal, posto em destaque, insere-se perfeitamente no contexto, como os pássaros, o barco, o bule, a lua, a casa ou a capela. Em contraponto, em muitas obras, há uma distinção na forma de representação das figuras humanas, as quais aparecem num primeiro plano, como que sobrepostas ao plano da paisagem.

Dentre os elementos que integram as paisagens, apontamos alguns ricos em simbolismo, tal como o peixe, que remete ao mundo subterrâneo, ao retorno cíclico, à vida e à fecundidade. Algumas vezes parecem representados fora d’água, como vistos em plano de corte.
Seriam eles o desejo do pescador de sonhos-boreais?
Ou peixes já pescados?
Peixes bailarinos?

Já a sereia, na expressão do artista, parece lá estar “criando estrelas, trazendo a noite”. No intuito de encantar o pescador com suas luas, atraí-lo com seu canto, a sereia faz simultaneamente referências aos perigos da navegação e aos das ciladas das paixões e dos desejos intensos.

O pássaro que ora olha e observa a paisagem, como se pressentisse um cardume de estrelas no fundo do mar, ora, em seu vôo, subvoa e invoca a relação entre o céu e a terra, remete à imortalidade da alma e à personalidade do sonhador. Surge como a imagem do observador complacente, ou então, da gaivota que na expectativa de um novo dia, anuncia o amanhecer. Estalo na madrugada?

O boitatá, um tipo de fantasma, alma penada, muito presente na cultura local, versão mítica do fogo-fátuo, também faz sua aparição, lembrando as fantásticas estórias incessantemente contadas e recontadas pêlos pescadores da ilha.

A síntese de toda a poética visual da pintura de Semy configura-se na cena do bule de café ornamentado com a figura da mulher, colocado sobre a bandeja, na areia da praia. O bule, que igualmente surge em obras anteriores, não é uma imagem desprovida de significado, é o bule característico do ilhéu, um tanto quanto mágico e criativamente utilizado para a realização de diversas tarefas cotidianas por pescadores e benzedeiras. O artista, que coleciona bules, diz-se atraído não só pelo aspecto ritualístico do objeto, mas também por sua forma estética, com a qual se identifica. Na obra aqui apresentada, o bule parece ter sido amorosamente ali colocado, na espreita do retorno do pescador, transformando-se assim na imagem esperançosa do regresso e do ancoradouro seguro. Como servir o amor?

Paisagens da janela, a alegoria de Vera

Pintora desde a adolescência, Vera dedica-se inteiramente à arte, vive da e na arte em sua plenitude. Seu repertório iconográfico é facilmente reconhecível, já que desde há muito tempo existem constantes em seu trabalho. Nas obras que compõem a ilustração do poema, percebemos que a artista não estabelece limites entre o onírico e a realidade: é o inconsciente da artista que aflora, ela pinta a cena oriunda de sua fantástica interior. Pinta o sonho do pescador, uma vez que o pescador é um sonhador. Este conteúdo onírico apresenta-se numa organização diferente da realidade da superfície, como num efervescente mundo imaginário, quase mítico, povoado de seres marinhos pertencentes ao cotidiano dos pescadores locais. Desta forma, cada uma das pinturas pode ser entendida como um micro-mundo, onde os elementos apresentam-se leves, soltos, flutuando, em constante movimento. Há uma permanente sensação de agitação e vibração, como se a pintura pudesse transformar-se, alterando a posição das partes que a compõem. Esta composição inusitada, essencialmente feminina, qual os elementos apresentam-se deslocados de seus locais habituais, juntamente com cromatismo intensamente explorado e associado à temática, cria a tensão presente na obra, atraindo a atenção do leitor como um chamamento à sua fruição.

Vera serve-se de apurada técnica pictórica, por ela mesma inventada e aperfeiçoada, que inclui vários e meticulosos procedimentos. Por meio de tal processo de pintura, elabora figuras, volumes, luz e sombras para criar as representações, alcançando um resultado bem particular, que lembra a textura visual do pontilhismo. Suas pinturas mostram primeiros planos tomados por mulheres e peixes, de modo que as paisagens configuram-se como cenários preenchendo o espaço circundante. São paisagens muitas vezes vistas de suas janelas e que uma vez guardadas na memória, retornam às pinturas. As mulheres e os peixes, já tão peculiares em seu trabalho, são elementos que sobressaem pela forma como a artista os representa, de maneira bem mais sofisticada e com algum sentido de abstração. As obras mostram sequência e unidade, cuja visualização é enfatizada pela mesma rede de pesca que se estende continuamente pelas pinturas.

    Nas pinturas de Vera a cor é exaustivamente explorada, prevalecendo alguma intensificação dos tons quentes e vibrantes. As nuances resultantes do efeito que simula o pontilhado, criam texturas visuais precisas, e os contrastes marcados atribuem sensações às formas, como de leveza, dureza e maciez. O colorido dos seres marinhos mostra uma luminosidade acentuada pelo reflexo do mar, e que, algumas vezes, quando eles já estão na superfície da água, se esvai transformando-se numa sombra distante. A artista dá atenção muito especial aos detalhes e miudezas, ricos em colorido, que formam padrões e texturas, como os cabelos, as escamas, os fios, as pontas, os tramados, as conchas e os espinhos, os quais através da repetição, criam um ritmo especial. Outro detalhe de marcada expressividade é o tratamento dispensado aos olhos dos peixes: parecem mirar o infinito, na espreita de um destino que sabem certamente acontecerá.

As figuras femininas, alegorias bem elaboradas no estilo pessoal de Vera, foco principal das obras, apresentam-se constituídas de formas arredondadas, cabeças inclinadas em relação ao pescoço, num olhar vago, distante e romântico; mulheres dotadas de cabeleiras fartas e esvoaçantes, olhos profundos e detalhados que miram o próprio interior, num olhar lânguido, esquivo e distante, olhar de vidro, desvivido. Parecem mesmo aflorar do inconsciente, como “anima”, ou mulher arquetípica.
Sonhadoras, sonham com os mistérios do mar?
Com o regresso de seu pescador?

Sugerem Medusas vaidosas, em suas cabeças adornadas com peixes-arco, e outros seres marinhos que as tangem, peixes na garganta, ou que se entrelaçam em seus cabelos transformando-se em motivos ornamentais, vestem-se de estrelas do mar.
Espelham cabelos do tempo?
Euforia de tempos?
Seriam estas mulheres as representações do feminino do imaginário do pescador?
Ou a eterna onipresença da feminilidade manifestada através da natureza?
Canto da bruxa?

Toda a metáfora visual de sua obra parece estar presente na pintura que nos mostra o barco alado, a canoa pássara. Com suas robustas e suaves asas, a barca representa a exploração do mundo inconsciente, da viagem interna da artista e de cada um de nós. Portador da simbologia da viagem, da travessia para um outro mundo, para o além-mar, o barco, assim como os habitantes do mar tratados de forma onírica, bem nos parecem figuras emprestadas da mitologia.
Limo inicial?

A obra de arte sempre deixa ver a concepção de mundo e a atitude do criador frente à realidade. No caso de Vera e Semy, além de nos contar a respeito do contexto cultural açoriano ilhéu, as obras nos remetem, ao imaginário português, o qual é sobremaneira povoado por imagens do além: d’além-mar, do eterno convite à viagem, simultaneamente da partida e do regresso, testemunhando nossa herança comum lusitana. Obras plenas tanto de simbolismos quanto de qualidades e soluções plásticas são como paisagens imagísticas de um colorismo vívido, oriundas dos fecundos universos expressivos dos artistas. Universos estes, tão particulares, quanto verdadeiros, pois que se mostram impassíveis em face às imposições dos modismos em arte.
Viagens através do espelho da retina?

A possibilidade de leitura de uma obra de arte é inesgotável, e a que aqui ensaiamos não escapa à generalização. O poema deu origem à pintura, que na sequência originou um comentário, provocando uma quase tautologia: a passagem da palavra escrita para a imagem visual e desta novamente para o texto discursivo. Assim, aventuramo-nos ao encontro de alguns aspectos significativos, buscando a tessitura e a sintonia existentes entre o poema e as pinturas. Esperamos que esta leitura crítica constitua-se numa forma de abrir caminho para que o leitor acesse a obra por meios próprios, num favorecimento à criação de outros percursos, de novas narrativas e olhares, nesta carta sem roteiro.


Dora Maria Dutra Bay
Membro da AICA/ABCA Ilha de Santa Catarina, 2003

O Pescador (1976)
Osmar Pisani

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I

O Pescador pesca a dor?

O Pecador é um sonhador
O Peixe escasso mede a
graça da rede no espaço
arfa a tarrafa no ombro
apoiada e o barco um peixe-arco
limita a matéria da rede
dissolve seus calcanhares
O peixe no fundo é na
superfície uma sombra distante

 

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II

pressente o pescador e anuncia
na leitura da maré
cardume imenso no mar
sente o peixe na areia
e a euforia de tempos
estalo na madrugada
amanhecem gaivotas
passam ruídos salinos
o barco mareia o peixe
a rede é lançada,
o canto da bruxa
repousa na epiderme
tange o peixe vigilante
forma o corpo e o peixe, salitre que aperta

 

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III

repartem a manta abstrata ondas se ajoelham de cansaço
o barco-aço
penteia o mar em anéis
engole o mar matinal
multiplica reclusão
o pescador voa
asas abertas se aprofunda
desafia vagas pertinentes
e ele colhe peixes na garganta
do sol do sal do vento
aquática saliva na boca da mesa parca

 

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IV

o peixe consente:
o espanto o prazo a nostalgia
o pescador é um sonhador
renova a força dos pés
subvoa a água no mastaréu
nem sente
na face-prata
o pano da vela esgarça

 

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V

o pescador pesca a dor?
vacila contra a certeza do barco
depois da pesca imprecisa
retorna crepuscular
é uma pedra tranquila
de mariscos à espera
aprende tudo com o vento
ilhas e pedras longas
fundo de mar e faróis,
náutico, resiste o dia-dia desta nostalgia.

 

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VI

serenos velames
contemplam o espaço
os nervos do vento
cobrem tuas mãos
e puxam a corda transparente
enquanto a rede descansa
como servir o amor
que não perdura nesta carta sem roteiro?

 

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VII

no animal alecrim navega branca agonia,
libélula que assiste
à fúria montadaurora
e a coreografia da vertigem
enreda olhar de vidro desvivido
que ave prende tua condição?
manhã de asas,
manhã de asas
pairas no próprio arco
de tua esperança
e lanças marinho-ventre
outro lance de tédio ressequido.

 

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VIII

o tigre da tarde
devora teus sonhos
carregas o crepúsculo
quase nada
entre as mãos do dia
e o dente claro do sol
que refrange tua carne
tua visão multiplica as quilhas e escamas de ar
vês no fundo
um cardume de estrelas
tão ágeis tão noites tão mares
e os olhos do vento levam
teu lance pelas funduras
nos cabelos do tempo
regressas ancoradouro.

 

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IX

incorporas parte do limo-peixe
hesita o musgo
recriando tua face-fortaleza;
que procissão-marinha
abre tuas veias e emborca no limo inicial?
tua fibra é a demanda que afaga longas tonturas.

 

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X

é o de menos tua esquivança.
ar: lâmina em tuas mãos afaga o bojo da canoa-pássara,
é claro o ónus de haveres
e a nítida salsugem que refaz
teu silêncio primário
sangue e maresia, circulam em teu desatino áspero.

ah! pescador de sonhos-boreais…
as rugas e queimaduras
mastigas a tua fibra.
ares bruxentos
comem tua pele,
benzes com água e sol
cabala e nosso senhor,
tu és um ser aquoso
circula a tarrafa,
o gesto-pássaro
colhe o peixe-bailarino,
veste-se de estrelas do mar,
inventa o sol nas montanhas
o tempo bom prá pescar
refaz mantas e vigílias
vaga preciso no escuro.
mareado é um Sonhador
ao longe vê a baleia
leva a canoa pró mar
arpoa a própria esperança.

 

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Osmar Pisani

    Osmar Pisani (Gaspar, SC, 1936), bacharel em Direito (UFSC -1965) e Letras (UFSC -1969), pós-graduado em História da Arte (UDESC -1987), é poeta, com os seguintes livros publicados: O Delta e o Sonho, Florianópolis: Roteiro, 1964; As Raízes do Vento, Florianópolis: IOESC, 1976; As Paredes do Mundo, Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1981,1a edição, e Letras Contemporâneas, 2001, 2a edição; Vens Volátil Como a Paisagem de Delvaux, Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1976; Vítor Meireles, peça em três atos sobre nosso grande pintor, Florianópolis: Fundação Aníbal Nunes Pires, 2002,1a edição e 2003,2a edição; Variações Lírico -Pictóricas Sobre o Boi de – Mamão, Florianópolis: Fundação Aníbal Nunes Pires, 2003, além da participação em inúmeras antologias de poesia, contos e ensaios sobre artes plásticas.

Integra a ABCA – Associação Brasileira dos Críticos de Arte, a AICA – Associação Internacional dos Críticos de Arte e a UBE – União Brasileira de Escritores – SP. E sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, membro do Conselho Estadual de Cultura de Santa Catarina e da Comissão de Curadoria de Exposições do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo – MAC / USP.

Semy Braga

    Semy Braga (Florianópolis, SC, 1947), inicia suas atividades como artista plástico em 1966, tendo participado de cursos com Sylvio Pléticos, no MASC e em Firen^e, Itália, em 1981. Em cada decénio, tem apresentado uma sequência de exposições, entre as quais Laguna Revisitada, de 1985, a Laguna de Giuseppe e Anita Garibaldi; A Ilha em Buenos Aires, de 1995 e Latinas, de 2002, exposição itinerante das cidades do Mercosul, realizada pela FUNALFA, de Juiz de Fora, MG, com a participação de artistas de dezesseis países da América do Sul e Central. É também médico e poeta, com os seguintes livros publicados: O Despertar de um Anjo Azul: Florianópolis, Edição do Autor, 1986, poemas e Manifesto por urna Estética Tupiniquim: Florianópolis, Edição do Autor, 1987, ensaio.

Vera Sabino

    Vera Sabino (Florianópolis, SC. 1949). Artista autodidata, recebeu o 1° prémio de desenho (1964) em Brasília, D.F.. Em 1968 fez sua individual em Florianópolis, S.C. desde então, uma extensa lista de exposições individuais e coletivas marcam seus trabalhos, quase que anualmente, mostrando ao público nacional a metamorfose das coisas sob o pincel cuidadoso da artista. Em 1988 realizou sua retrospectiva de 20 anos no Museu de Arte de Santa Catarina (MASC) em Florianópolis. Em 1998 celebrou com uma itinerante pelo Estado, encerrando no Espaço Cultural Laura Alvim no Rio de Janeiro, seus “30 anos de arte”.
É a Ilha de Santa Catarina sua personagem constante de inspiração e o centro de suas atenções, com suas plantas, cores, mitos e tradições sacras.

Registro Gráfico


Elaboração do Projeto: Fundação Aníbal Nunes Pires
Impressão e Acabamento: Floriprint Indústria Gráfica e Etiquetas Ltda
Fotografias: António Carlos de Macedo Fasanaro
Fotolitos: Pontgraf Originais Gráficos Ltda
Produção Gráfica e Revisão de Textos: Osmar Pisani Filho
Tradução: Samantha Neves Hoffmann